quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Jornalismo dói

O jornalismo, às vezes, é doloroso. Na verdade, quase sempre. E desde sempre. Mas tenho a impressão de que é mais doloroso atualmente. Pelo menos para quem faz jornalismo.

Um dos motivos para isso, suponho, é esta tal da internet. A rede é uma ferida constante e inevitavelmente aberta para o jornalismo. E isso dói. Dói porque faz da incapacidade jornalística de depreender os fatos uma fratura ainda mais exposta. Cada comentário é uma facada na nossa capacidade de observação, investigação ou síntese dos acontecimentos. Ou tudo isso junto. E isso não é necessariamente um atestado de incompetência.

Na maior parte do tempo, o jornalismo é pouco profundo justamente porque não há tempo para se aprofundar. Às vezes são decisões meramente jornalísticas que acabam passando a impressão de superficialidade. Preferir termos do senso comum a expressões, digamos, mais filosóficas, por exemplo. É um artifício jornalístico para atingir um público maior, mas sempre soa como ignorância para os mais entendidos.

Outro dia escrevi sobre moradores de rua e levei uma vaia nas redes sociais. "Se a repórter tivesse pesquisado direito, saberia que o correto é pessoas em situação de rua, isso só mostra a decadência do jornalismo". Não quero aqui falar de certo e errado, mas a presunção do comentário é, no mínimo, injusta. E toda busca por estatísticas? E o trabalho de campo? E as entrevistas? É tudo fruto de imaginação? Não, é trabalho jornalístico. O tal leitor jamais saberá que, para escrever aquelas 50 linhas, além de bater de viaduto em viaduto na cidade, eu li dezenas de artigos acadêmicos e publicações oficiais, portanto, sim, eu tinha conhecimento do termo "pessoas em situação de rua" e até sou capaz de compreender que ele designa uma condição social muito mais complexa e, de certa forma, menos pejorativa do que o usual "moradores de rua". Mas isso era o mais importante?

Jornalisticamente, achei que não era. Posso ter me enganado, mas os demais comentários sobre o mesmo tema me oferecem poucos indícios de que usar um termo novo mudaria os sentidos da audiência sobre o que escrevi. É que esse tipo de assunto dói para quem lê. Dá para perceber pelos comentários mais perversos que esses temas são capazes de provocar. Dói demais, para quem escreve, ler o que se comenta sobre o que você escreveu. É de perder a esperança na humanidade - e no jornalismo.

Só que um jornal que se preze precisa tocar nas feridas da sociedade. Falar de assuntos dolorosos no jornal estimula o debate em torno da cura das nossas mazelas. Era isso que eu ouvia na faculdade. Mas o mundo de hoje sequer suporta um botão "não curtir" na rede social. É proibido se aborrecer na internet. Aborrecer os outros, então? A internet só serve pra gente se divertir.

Portanto, não venha lá o Seu Jornalismo me falar do que eu prefiro não saber. Faça uma coisa mais descontraída, uma lista de filmes para ver no Netflix, um testezinho para saber qual personagem do Game of Thrones mais se parece comigo. E o jornalismo, claro, vai lá e faz. Afinal, a máxima agora é estar atento aos anseios da audiência. Além do mais, não pega bem ficar dando motivo para falarem mal do que você publica. O negócio é multiplicar curtidas.

Nada contra o jornalismo de entretenimento, é uma prática legítima e sempre esteve aí. Nada contra, também, ao debate aberto nas tais redes sociais, é um avanço para a liberdade de expressão. A questão é que essa ditadura da curtição, essa necessidade de ser cada vez mais interessante do que importante faz do jornalismo um pouco mais doloroso hoje em dia.

Enfim, se ficou para trás aquela ilusão dos tempos de faculdade de querer "transformar a sociedade", o que nada mais é do que um eufemismo para "mudar o mundo", depois de alguns anos de jornalismo, posso dizer que uma certeza eu tenho: se não pude mudar o mundo, pelo menos o jornalismo mudou a minha forma de ver o mundo. E até isso dói de vez em quando.