“A ingrata tarefa jornalística de listar os mortos na tragédia que abreviou a vida de 235 jovens que saíram de casa para se divertir”
Passei o sábado praguejando contra o editor que tinha adulterado o lide da minha matéria. "Vinte e cinco de janeiro vai entrar para a história", enfiou ele lá no meu texto sobre uma megaoperação (termo também censurado na minha página, mas que depois vi impresso na capa do jornal) que a polícia tinha feito para colocar ordem no semiaberto.
Foto: Adriana Franciosi/AgênciaRBS
“O dia que entrou para a história é uma expressão muito forte, a gente não sabe o dia de amanhã!", dizia eu para minha colega, enquanto tomávamos umas cuias de chimarrão antes de ir para a beira da praia aproveitar o sol que iluminava nossa folga. Era uma conjunção de duas coisas raras: sol na praia no fim de semana e duas amigas jornalistas conseguirem conciliar a brecha na escala. E parece até que eu estava adivinhando o dia seguinte.
Na manhã de domingo, meu telefone toca às 7h30min. Chamada não identificada. Em celular de repórter, o desconhecido tem nome, e se chama Redação. “Teve um incêndio grande em Santa Maria e precisava que tu viesses para a Redação dar uma mão na cobertura”, disse o coordenador de produção. “Estou em Atlântida, mas qualquer coisa me avisa que eu vejo como voltar”, respondi e voltei a dormir.
Levantei da cama por volta das dez da manhã. “O pessoal do Diário de Santa Maria está trabalhando hoje, hein? Diz que morreram 200 pessoas num incêndio numa boate”, disse o pai da minha colega. Bastava para saber que minha folga tinha terminado. Nossa folga. Olho para o final do corredor e quem está atendendo ao telefonema da Redação é minha colega. Fechou o tempo, hora de voltar.
Se tem um dia que vai entrar para a história, desta vez não restam dúvidas, é 27 de janeiro de 2013. Com os relatos de sobreviventes, a cobrança por explicações e pela punição dos responsáveis, a descrição do cenário que se formou em Santa Maria naquele domingo – cada uma mais comovente do que a outra, compiladas na edição especial de Zero Hora de segunda-feira – vem a ingrata tarefa jornalística de listar os mortos na tragédia que abreviou a vida de 235 jovens que saíram de casa para se divertir. É de tirar o sono da equipe inteira.
“Bora pra festa que a vida é curta”, postou uma jovem no Facebook. “A Kiss nunca mais será a mesma depois da festa de hoje”, escreveu outra no Twitter. Aí a gente começa a ouvir as histórias, contadas por familiares e amigos, compartilhadas pelos colegas que fazem mutirão para escapar da frieza dos números no jornal. Tem o que pediu para o pai adiar a lida na fazenda para domingo, porque queria fazer festa no sábado. Tem o outro que não ia sair de casa, mas resolveu acompanhar os amigos de fora que foram lhe visitar. Tem a funcionária da boate que voltou para dentro para alertar os que tentavam sair pela porta do banheiro. Tem a guria que ia começar o doutorado, o guri que ia entrar para o Exército, a que tinha passado no vestibular, o que ia fazer aniversário dias depois... iam.
A vida é curta e a Kiss nunca mais será a mesma. Nem mais será. Mas as curtas vidas ficarão na história. Pode colocar no lide.
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